Tradições e suas contradições
De caça às baleias à mutilação genital feminina, a "tradição" vem sendo usada para disfarçar a barbárie Editorial | Por Monica Pinto 16/09/2018 11h30Nesta sexta-feira, a Comissão Internacional da Baleia (CIB), pela primeira vez reunida no Brasil, em Florianópolis (SC), rejeitou o texto apresentado pelo Japão que pretendia autorizar a caça comercial de baleias, mantendo assim a moratória vigente. Além de alegar um interesse de pesquisa biológica – que não tem nenhum amparo na sensatez -, o governo japonês afirma que a caça à baleia é uma antiga tradição cultural do país.
Eis aqui a questão crucial: até que ponto, sob o norte do respeito a tradições culturais, o mundo deve admitir aberrações e crueldades óbvias? Em julho deste ano, com muito atraso, a Nigéria oficializou a proibição da mutilação genital feminina no país – outra “tradição cultural” que ainda acontece em várias partes do mundo, com resultados trágicos para as pré-adolescentes que têm o clitóris extirpado quase sempre a sangue frio. Segundo levantamento feito por entidades de defesa dos direitos humanos, a mutilação feminina atingiu 25% das mulheres nigerianas entre 15 e 49 anos. Improvável que elas tenham sido consultadas sobre a validade dessa “tradição” e, muito menos, se concordavam em passar por tamanha violência, desprovida de qualquer sentido.
Outro exemplo de “cultura” a serviço da barbárie: ao contrário do que é apregoado, nunca existiu no antigo Código Penal brasileiro o atenuante de “legítima defesa da honra” para homicídios cometidos por maridos/noivos/namorados que flagrassem as parceiras em “traição”. Esse conceito foi, porém, tão largamente utilizado por advogados de defesa desses assassinos que criou-se o mito de tal brecha jurídica. Na prática, a “legítima defesa da honra” os livrou rotineiramente da cadeia com base num entendimento alicerçado no extremo da cultura machista e de “tradições” morais.
Há muitos outros exemplos, infelizmente. De volta ao trocadilho do título, quando uma “tradição” evoca tantas contradições, quando claramente avilta os direitos humanos e os dos animais, há que se lutar, sim, pela sua abolição. O silêncio é omisso e em nada interessa ao mundo que cabe às pessoas de bem construir.
