Conheça termos e comportamentos racistas presentes no cotidiano
Racismo, preconceito e discriminação estão na base da formação do brasileiro Cotidiano | Por Saullo Hipolito 20/11/2020 08h50 - Atualizado em 20/11/2020 10h57Racismo, de acordo com o pós-doutor Ilzver Matos, é uma ideologia que prega a superioridade de uma raça sobre outra, nesse caso, a superioridade dos brancos sobre os negros. Preconceito é o sentimento internalizado do racismo, ele impregna os corações e mentes dos cidadãos e se transforma num julgamento feito sem o conhecimento da verdade sobre a população negra. Já a discriminação é quando a ideologia do racismo ultrapassa o limite do mero sentimento internalizado e se transforma numa ação ou omissão - que pode ser de instituições públicas, privadas ou de qualquer cidadão - que atinge explícita ou implicitamente negras e negros, negando-lhes direitos e bens.
Para discorrer mais sobre o assunto e trazer relatos mais humanizados, F5 News entrevistou duas pessoas que aceitaram falar sobre o tema e suas realidades distintas:
Rafaelle Silva
Membro do coletivo Periferia Ambulante, a estudante de Jornalismo costuma falar sobre racismo e autocuidado voltado ao cabelo e a pele em suas redes sociais. Ela já vivenciou diversos momentos de um racismo muitas vezes oculto para quem fala, mas que machuca aquele que ouve.“Eu costumo presenciar falas disfarçadas que minam a minha capacidade profissional e intelectual. Por exemplo: em uma discussão sobre política já escutei muito ‘as suas análises não são imparciais porque você sempre fala sobre negros’, como também ‘pessoas como você não combinam muito com vídeo’. Na Universidade, vi muitas estudantes brancas tomando esse espaço do audiovisual e eu dificilmente era escolhida, o que me fez hoje estar no audiovisual foi meter as caras mesmo e o acolhimento dentro do meu estágio” afirmou.
Rafaelle ainda falou sobre a dificuldade que muitas pessoas têm em lidar com os negros ocupando lugares antes impensáveis, fazendo um processo de embranquecimento. “Escuto sempre aquilo de deslegitimação da minha negritude ‘você não é negra, você é morena’. Acredito que nós, negros, precisamos fortalecer cada vez mais nossa comunidade e cobrar respeito. Precisamos mostrar para a sociedade brasileira a importância do negro na construção desse país. As outras comunidades são unidas aqui na diáspora brasileira como a chinesa, judaica, japonesa. E infelizmente, pelo apagamento das nossas raízes africanas, muitos negros brasileiros não entendem que são descendentes diretos de africanos. O fortalecimento da nossa comunidade não irá acabar com o racismo, mas irá fortalecer nossas vivências e nosso projeto de bem viver”, disse a estudante.
Ilzver Matos
O pós-doutor e professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes é atuante e estudioso das causas negras. Mas isso não impediu que ele sofresse racismo. Durante sua fala ao F5 News ele detalhou que foi impedido de entrar no Fórum Gumersindo Bessa, em Aracaju, enquanto advogado; também, durante uma blitz, mesmo com todos os documentos em ordem, foi obrigado, junto a um parente, a descer para ser revistado. Essas e muitas outras vivências formaram o cidadão e o fizeram cada vez mais forte na luta pelos seus direitos.“Sou a primeira pessoa com doutorado em toda a história da minha família e o único professor doutor negro no programa de pós-graduação onde estou credenciado e um dos poucos negros no curso de graduação em direito ao qual estou vinculado. Se para um adulto racialmente consciente esses episódios geram imensa dor, imaginem para uma criança (muitas sofrem racismo na escola e no dia-a-dia, o tão chamado de bullying hoje em dia) ou para uma pessoa simples e sem instrução formal, sem meios de defesa?”, indagou Ilzver Matos.
Para o professor, a falta de um órgão de promoção da igualdade racial, nos moldes da Bahia, Pernambuco e Maranhão - estados que compartilham com Sergipe a lista dos quatro mais negros do Nordeste - ou um Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial é um fato a ser questionado. “Não temos, por via de consequência, um Plano Estadual de Promoção da Igualdade Racial, que elencaria ações, metas e estabeleceria repartição de responsabilidades e orçamento entre as diversas secretarias e outros órgãos estatais para que tais políticas viessem a ser estruturadas democraticamente, transversalmente, descentralizadamente, pois igualdade racial também é dever de instituições privadas, que lucram com a força de trabalho da população negra, e da sociedade civil”, diz o advogado. E continuou: “Sergipe é um dos sete estados do país que ainda não aderiram ao Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, previsto em 2010 no Estatuto da Igualdade Racial. O quadro é bem problemático e exige ação radical e urgente dos atores interessados”, lamentou Ilzver.
20 expressões que devem sair do seu vocabulário
Cor de pele - Aprende-se desde criança que “cor de pele” é aquele lápis meio rosado, meio bege. Mas é evidente que o tom não representa a pele de todas as pessoas, principalmente em um país como o Brasil. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, realizada pelo IBGE, 53% dos brasileiros se declararam pardos ou negros.
Doméstica - Negros eram tratados como animais rebeldes e que precisavam de “corretivos”, para serem “domesticados”.
Estampa étnica - Estampa parece ser, no mundo da moda, apenas aquela criada pelo olhar eurocêntrico. Quando o desenho vem da África ou de outra parte do mundo considerada “exótica” segundo essa visão, torna-se “étnica”.
A dar com pau - Expressão originada nos navios negreiros. Muitos dos capturados preferiam morrer a serem escravizados e faziam greve de fome na travessia entre o continente africano e o Brasil. Para obrigá-los a se alimentar, um “pau de comer” foi criado para jogar angu, sopa e outras comidas pela boca.
Meia tigela - Os negros que trabalhavam à força nas minas de ouro nem sempre conseguiam alcançar suas “metas”. Quando isso acontecia, recebiam como punição apenas metade da tigela de comida e ganhavam o apelido de “meia tigela”, que hoje significa algo sem valor e medíocre.
Criado-mudo - O termo usado para nomear o móvel que fica ao lado da cama surgiu de uma das tarefas que os escravos eram obrigados a realizar: segurar objetos para os seus senhores. Por serem proibidos de falar e conversar, eram chamados de mudos. Substitua urgentemente por mesinha de cabeceira.
Mulata - O substantivo vem de “mula”, animal derivado do cruzamento de um burro com uma égua. Era como as filhas bastardas de homens brancos, geralmente Senhores do Engenho, com mulheres negras, geralmente escravas, eram chamadas. Sobretudo, é um termo racista.
Cor do pecado - Utilizada como elogio, se associa ao imaginário da mulher negra sensualizada. A ideia de pecado também é ainda mais negativa em uma sociedade pautada na religião, como a brasileira.
Samba do crioulo doido - Título do samba que satirizava o ensino de História do Brasil nas escolas do país nos tempos da ditadura, composto por Sérgio Porto (ele assinava com o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta). No entanto, a expressão debochada, que significa confusão ou trapalhada, reafirma um estereótipo e a discriminação aos negros.
Ter um pé na cozinha - Forma racista de falar de uma pessoa com origem negra. Infeliz recordação do período da escravidão em que o único lugar permitido às mulheres negras era a cozinha da casa grande. Uma realidade ainda longe de mudar no Brasil.
Moreno(a) - Racistas acreditam que chamar alguém de negro é ofensivo. Falar de outra forma, como “morena” ou “mulata”, embranquecendo a pessoa, “amenizaria” o “incômodo”.
Negro(a) de traços finos - A mesma lógica do clareamento se aplica à “beleza exótica”, tratando o que está fora da estética branca e europeia como incomum.
Cabelo ruim - Fios “rebeldes”, “cabelo duro”, “carapinha”, “mafuá”, “piaçava” e outros tantos derivados depreciam o cabelo afro. Por vários séculos, causaram a negação do próprio corpo e a baixa autoestima entre as mulheres negras sem o “desejado” cabelo liso. Nem é preciso dizer o quanto as indústrias de cosméticos, muitas originárias de países europeus, se beneficiaram do padrão de beleza que excluía os negros.
Não sou tuas negas - A mulher negra como “qualquer uma” ou “de todo mundo” indica a forma como a sociedade a percebe: alguém com quem se pode fazer tudo. Escravas negras eram literalmente propriedade dos homens brancos e utilizadas para satisfazer desejos sexuais, em um tempo no qual assédios e estupros eram ainda mais recorrentes. Portanto, além de profundamente racista, o termo é carregado de machismo.
Denegrir - Sinônimo de difamar, possui na raiz o significado de “tornar negro”, como algo maldoso e ofensivo, “manchando” uma reputação antes “limpa”.
A coisa tá preta - A fala racista se reflete na associação entre “preto” e uma situação desconfortável, desagradável, difícil, perigosa.
Serviço de preto - Mais uma vez a palavra preto aparece como algo ruim. Desta vez, representa uma tarefa malfeita, realizada de forma errada, em uma associação racista ao trabalho que seria realizado pelo negro.
Ovelha negra - Não precisa parar de escutar um dos muitos hits de Rita Lee, mas é preciso admitir que esta problematização é conveniente. Afinal, há uma série de expressões aliadas à palavra negra/negro que se tornam pejorativas e representam muitas vezes algo pejorativo, ilegal: lista negra, mercado negro, magia negra, etc. Fuja delas.
Inveja branca - A ideia do branco como algo positivo é impregnada na expressão que reforça, ao mesmo tempo, a associação entre preto e comportamentos negativos.
Amanhã é dia de branco - vivemos em um país onde a escravidão do povo negro durou mais de 300 anos, e os escravizados, mesmo sendo forçados a trabalhar, geralmente eram vistos como ‘vagabundos’. Esse termo reforça que o negro é sempre visto como a pessoa que faz ‘corpo mole’, aquele ‘malandro’ que não faz nada.





