Em 2019, mais de 119 BOs foram abertos por injúria racial em Sergipe
Denúncias são encaminhadas ao Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis Cotidiano | Por Letícia Mendonça 26/01/2020 07h30 - Atualizado em 26/01/2020 11h26Os casos de injúria racial estão se tornando recorrentes em Sergipe. Nesse mês foram registradas e tiveram grande repercussão duas ocorrências, conforme noticiou F5News: “Turista francês é preso por injúria racial em Aracaju” e “Turista é presa na Orla de Atalaia por injúria racial”. Até novembro de 2019, de acordo com a Coordenadoria de Estatística e Análise Criminal (CEACrim), foram registrados 119 boletins de ocorrência referentes aos crimes de racismo e injúria racial no estado.
O crime de injúria racial é previsto no Código Penal (art. 140, parágrafo 3º) enquanto o crime de racismo é definido pela Lei 7716/89. Injúria racial é a ofensa devido à cor, raça, etnia, origem, religião de uma pessoa, ou contra uma pessoa idosa ou portadora de deficiência. É registrado como um crime afiançável e a pena é de reclusão de um a três anos e multa.
Já o crime de racismo consiste no ato de discriminação da raça, etnia, cor, religião, origem, identidade de gênero ou orientação sexual. O racismo pode ser praticado contra um indivíduo ou contra um determinado grupo social. É inscrito como inafiançável e imprescritível, com pena de um a cinco anos de reclusão. Para a vítima, não há prazo para denunciar o crime.
Daniel Gonzaga, ex-funcionário de uma companhia aérea, sofreu injúria racial durante seu tempo de contribuição na empresa. Em 2009, durante a madrugada, uma médica queria embarcar em um voo no horário das 6h, mas havia chegado às 5h45 e o check-in é fechado 30 minutos da decolagem. Daniel, como supervisor, avisou que ela não poderia pegar aquele voo, a partir daí começaram os insultos. A cliente invadiu a área restrita das esteiras, chamando-o de “cachorro” e dizendo “é um povo, bando de analfabeto, morto de fome, que não tem onde cair morto, não tem dinheiro nem para comer esse negro”.
Os envolvidos foram encaminhados para a delegacia, onde deram seus depoimentos e a autora do crime foi liberada, respondendo, posteriormente, a um processo por injúria racial e outro de danos morais. A médica foi condenada em ambos os processos, ficando restrita em saídas e pagamento de multa.
Outro caso também aconteceu com a estudante de 24 anos Karoline Vitória, há três anos, durante um bloquinho de carnaval de rua, quando tentava passar entre os foliões, junto com um grupo de amigos (cinco pessoas negras e uma branca). Eles foram orientados a passar por um outro lado porque estava apertado. Ao darem a volta, ouviram insultos de um terceiro, do tipo “é, assim mesmo, gente do cabelo assim passa para lá mesmo, lugar de preto é na senzala, não é aqui, não”.
A reação deles foi imediata, mas, por medo de acontecer uma retaliação com violência física, os amigos resolveram se afastar. Karoline conta que ligou para o Centro Integrado de Operações em Segurança Pública (Ciosp), mas disseram que não podiam tomar nenhuma atitude. Então, para não deixar o agressor impune, resolveram falar com a organização da festa, que abriu um espaço para ela falar no microfone do trio, e explanar o que havia acontecido.
No dia seguinte, postaram um texto de “desabafo” na página de uma rede social e tiveram bastante apoio. Cerca de duas semanas depois, eles prestaram queixa, já com um advogado de apoio. Ao ser chamado para depor, o acusado disse que estava bêbado na festa, que não lembrava que aquilo tinha acontecido e que não estava em um dia bom porque tinha brigado com a namorada, mas que poderia se retratar, além de ter pedido desculpas aos envolvidos.
“O que mais impressionou é que a gente estava em um local público, cheio de gente, e ele não se intimidou em momento algum; eram cinco pessoas negras juntas, e ele não teve medo de fazer isso. E ele falou alto mesmo, sendo claro e específico”, alegou Karoline.
O autor do crime foi condenado no ano passado e sua pena foi de medidas socioeducativas e restritivas. Foi aberto mais um processo civel, de danos morais, e este ainda segue em trâmite.
Muitas pessoas têm dúvidas se uma discriminação que sofreu foi injúria racial ou racismo, e se seria um caso de denúncia ou não. Muitas vezes são relevados, principalmente se acontece com crianças, por causa da tendência à naturalização. Isso está enraizado no país e os crimes costumam ser invisibilizados por aqueles que defendem que não existe racismo no Brasil. Dessa forma, o racismo acaba sendo velado e naturalizado.
Uma estudante universitária, que preferiu não se identificar, relatou o que passou em sua infância. “No período da escola, a mãe da minha melhor amiga [da época] não queria que a filha dela tivesse amizade comigo, por causa da minha cor. Eu fiquei muito mal, não entendi qual era o problema comigo. Eu só fiquei sabendo porque ouvi uma conversa da minha mãe com minha vó, dizendo que a coordenadora ligou falando isso”.
Outras pessoas, mesmo não denunciando, levam essas situações como degrau para ajudar a seguir em frente e ter orgulho de quem são. É o caso da estudante Aline Rodrigues. “Já me agrediram verbalmente quando eu era criança/adolescente. Me chamavam de cabelo de bruxa, de bombril. No momento eu até ficava triste, mas nunca deixei que essas ofensas me abalassem. Sempre amei meu cabelo. Sou cacheada desde que me entendo por gente e nunca tive vontade de alisar. Sou muito grata à minha mãe por todo amor e cuidado que sempre teve com meu cabelo desde que eu era pequena. Meus cabelos dizem muito sobre mim, minha personalidade, origens. E não há racismo algum que me faça me envergonhar disso”, disse ela ao F5News.
Até o último Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo, 13 de maio de 2019, o Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV) de Sergipe registrou apenas sete denúncias de casos de racismo e 51 casos de injúria racial. Esses crimes, ocorrendo de forma virtual, também podem ser denunciados. Em 2017, a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos recebeu e processou cerca de sete mil denúncias anônimas de racismo envolvendo três mil páginas diferentes (557 já foram removidas), dispostos em 18 países em quatro continentes.
As vítimas podem registrar boletim de ocorrência em qualquer delegacia de polícia do Estado.
Em Aracaju, os BOs serão encaminhados para a Delegacia de Atendimento a Crimes Homofóbicos, Racismo e Intolerância Religiosa (Dachri), que funciona no prédio do DAGV. Itabaiana, Estância, Lagarto e Nossa Senhora do Socorro também possuem a Delegacia de Atendimento aos Grupos Vulneráveis, onde são atendidos os casos de injúria racial.
“Após a denúncia, é instaurado o inquérito policial para apuração dos fatos noticiados. A vítima presta depoimento, bem como as testemunhas. São arrecadadas provas e o acusado é interrogado. O prazo é de 30 dias para finalização do inquérito e encaminhamento à Justiça”, explica a delegada Meire Mansuet.
Também é possível denunciar pelo Disk Denúncia da Polícia Civil, ligando 181.
*Estagiária sob supervisão da jornalista Fernanda Araujo





