Direitos Humanos
Ministério Público registra 22 denúncias por feminicídio em um ano em SE
Especialistas apontam ser preciso uma reestruturação das relações de gênero
Cotidiano | Por Emerson Esteves* 16/02/2021 07h00

Em todo o ano de 2020 foram registradas nos sistemas do Ministério Público de Sergipe (MPSE) 22 denúncias de casos de feminicídio. O crime é desencadeado por elementos que vão do ódio, desprezo, sentimento de posse e ciúme, sendo caracterizado pelo homicídio de mulheres, motivado pelas relações de gênero. A Lei do Feminicídio data de 9 de março de 2015, alterou o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) para incluir a modalidade como homicídio qualificado. Conforme a lei, o feminicídio é o assassinato de mulheres apenas pelo fato de serem do sexo feminino. O crime ocorre quando envolve violência doméstica e familiar ou quando há menosprezo e discriminação à condição de mulher.

De acordo com o Atlas da Violência 2020, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2018, uma mulher foi assassinada no Brasil a cada duas horas, totalizando 4.519 vítimas. Destas, vale frisar as mulheres negras que são 68% dessa triste estatística. 

“Entender o fenômeno da violência de gênero contextualizando com questões de raça e classe é essencial não apenas para revertemos essa estatística, mas também para encontrarmos fórmulas de redução das desigualdades sociais”, ressalta a defensora pública do Estado de Sergipe, Carla Caroline de Oliveira Silva, mestranda em Direitos Humanos . 

Segundo a pesquisadora, o fator racial afeta esse cenário a partir de diversos desdobramentos, sendo o da vulnerabilidade socioeconômica um dos mais mencionados.  “A mulheres negras são grande parte da composição que forma a massa de pessoas desassistidas dos direitos sociais, como saúde, educação e acolhimento psicossocial”, afirmou ao F5 News. 

Vulnerabilidades 

A pesquisadora e defensora pública destaca que o fator da ausência de rede de apoio familiar e/ou público se reflete na forma como a mulher negra lida com a opressão de gênero e acaba reforçando a naturalização dessa violência em razão desta ter sido vivenciado por suas ancestrais. Isso contribui para relação direta na manutenção da naturalização do ciclo de violência. 

De acordo com Carla Caroline, um outro fator que condiciona a mulher negra nessa circunstância vulnerabilizante e a deixa mais suscetível a afetividades tóxicas é a preterição social na distribuição dos afetos. 

“Isto se trata do resultado da hiperssexualização do corpo da mulher preta (a ideia de que não é mulher para casar) decorrente dos séculos de escravização, conjugado com a naturalização da objetificação do gênero feminino (a mulher enquanto extensão do patrimônio de direitos masculino deve servir a sua ascensão social, logo homens em geral prefeririam mulheres brancas) impõe à mulher negra uma socialização fundada na depreciação de seu corpo e status social, atingindo sua autopercepção quanto ao direito de ser amada e de como será a dinâmica de seu relacionamento afetivo”, afirmou Carla Carol ao F5 News. 

“A beleza de padrão eurocêntrico e o embranquecimento visto como um fator de ascensão social faz com que muitas vezes as mulheres não-brancas negligenciem o autocuidado e a autoestima, as deixando menos atentas aos sinais de violência (não ser apresentada a família do parceiro e ouvir comentários depreciativos sobre seu cabelo são exemplos, frases como "Se você me deixar, ninguém vai te querer" também muito comuns) e portanto naturalizando relacionamentos violentos, não apenas fisicamente, mas também patrimonial e psicologicamente”, complementa a pesquisadora dos Direitos Humanos. 

Interseccionalidades

Carla Akotirene, bacharela em serviço social, mestra e doutoranda em estudos sobre mulheres, gênero e feminismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) destaca em suas pesquisas que a interseccionalidade é uma ferramenta usada para pensar a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, e as articulações decorrentes daí, que imbricadas repetidas vezes colocam as mulheres negras mais expostas e vulneráveis aos trânsitos destas estruturas. Seu livro “O que é Interseccionalidade?” se tornou referência para pensar a temática no Brasil.

“Não podemos reduzir as pluralidades de contextos experienciado pelas mulheres a fórmulas para tentar explicar o resultado estatístico, no entanto, o índice aponta para a necessidade de entendermos o fenômeno da violência de gênero com recorte racial, havendo a necessidade de aperfeiçoarmos o estudo nesse campo”, comenta Carla Carol ao F5 News. 

A pesquisadora enfatiza que, para tentar desvendar a origem da violência e criar estratégias para reverter sua naturalização e prevenir sua ocorrência, há a necessidade de ouvir os relatos dessas mulheres. “Padrões sociais heteronormativos e de classe econômica operam nessas questões e impactam nosso meio de maneiras diversas, as situações vivenciadas por mulheres cisgênero, transgêneros, travestis, lésbicas, bissesexuais, ricas, classe média e/ou periféricas são inúmeras e diversas”, afirma. 

Encarar o problema de frente

“A superação desses números espantosos perpassa por políticas públicas de reestruturação das relações de gênero, precisa-se encarar a questão como uma pauta de discussão e de reeducação de toda sociedade e não apenas de repressão penal”, declarou Carla ao F5 News. 

Ela cita que há a necessidade de discutir o que é violência e como essas violências se manifestam, além da desnaturalização da sexualização do corpo feminino e de sua objetificação nesse processo, “Tanto a questão específica da vulnerabilidade da mulher negra, entendo que a ruptura com os paradigmas eurocêntricos deve ser um ponto crucial, é essencial a reconfiguração da autoimagem para um novo marco de autocuidado”. 

“A mulher negra tem o direito de ser amada e tem o direito de exigir amor, carinho e respeito. A mulher negra tem direito a sonhos, objetivos e metas. Angela Davis diz que, quando a mulher negra ascende, toda estrutura se movimenta com ela; então, isso é essencial para o nosso desenvolvimento civilizatório”, conclui a pesquisadora.

“A violência doméstica contra a mulher deve ser combatida aos primeiros sinais, evitando assim a ocorrência do evento letal feminicídio”

Segundo o Atlas da Violência de 2020, embora 2018 tenha apresentado uma tendência de redução da violência letal contra as mulheres, na comparação com os anos mais recentes, ao se observar um período mais longo no tempo, é possível verificar um aumento nas taxas de homicídios de mulheres no Brasil e em diversos estados. Entre 2008 e 2018, o país teve um aumento de 4,2% nos assassinatos de mulheres. Em alguns estados, a taxa de homicídios em 2018 mais do que dobrou em relação a 2008.

Entre 2013 e 2018, ao mesmo tempo em que a taxa de homicídio de mulheres fora de casa diminuiu 11,5%, as mortes dentro de casa aumentaram 8,3%, o que é um indicativo do crescimento de feminicídios.

A pena prevista para o feminicídio é de 12 a 30 anos de reclusão, enquanto um homicídio simples é punido com reclusão de 6 a 20 anos. A lei também considerou o feminicídio um crime hediondo, o que impede, por exemplo, que os acusados sejam libertados após o pagamento de fiança.

“As mulheres vítimas de violência doméstica devem procurar as delegacias de polícia para efetuar a denúncia da violência sofrida para que o fato delituoso seja encaminhado ao Poder Judiciário para a efetiva punição dos autores”, afirma a delegada Meire Mansuet ao F5 News.

Ela atua na Delegacia de Atendimento a Crimes Homofóbicos, Racismo e Intolerância Religiosa (Dachri) e também é engajada no tema da violência doméstica dos LGBTQI+. Ela destaca como barreiras que dificultam às mulheres levar adiante as denúncias de violências sofridas as dependências econômica e emocional dos agressores:

“Diversos fatores ocorrem para que as mulheres vítimas de violência doméstica não denunciem seus agressores. Desde a dependência financeira como a dependência emocional são fatores preponderantes que fazem com que essas mulheres não denunciem as violências sofridas”, ressalta a delegada.

“A violência doméstica contra a mulher deve ser combatida aos primeiros sinais, evitando assim a ocorrência do evento letal feminicídio”, finaliza. 

Canais para denúncias

Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher – A ligação é gratuita e o serviço funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. O Ligue 180 atende todo o território nacional e também pode ser acessado em outros 16 países.

Polícia Civil – 181 – a ligação é gratuita e sigilosa. As ligações são recepcionadas pela Divisão de Inteligência da Polícia Civil (Dipol).

Polícia Militar – 190 – utilizado, primordialmente, em situações nas quais um crime com potencial risco à vida ocorreu ou está em andamento, além de outras ocorrências que estão acontecendo naquele momento, como a violência doméstica.

O MPSE atende o cidadão de forma presencial ou por meio da Ouvidoria – Ligue 127 / ouvidoria@mpse.mp.br

 

*Estagiário sob a supervisão do jornalista Will Rodriguez
 

Edição de texto: Monica Pintosh
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